Em seu livro “Práticas de mobilidade urbana contemporânea: política e projeto”, o engenheiro de caminhos catalão Manoel Herse, com trabalhos de urbanismo e mobilidade realizados em Barcelona e em diversas cidades da América Latina, inclusive no Rio de Janeiro, nos oferece uma objetiva e iluminada síntese: uma combinação de ações precisas, segundo o autor, para se alcançar uma mobilidade sustentável, apresentada através do diagrama abaixo:
Segundo ele, essa constatação surgiu do exame das práticas mais bem-sucedidas no mundo para conquista de uma mobilidade urbana alternativa, só alcançável através da combinação de três esforços políticos de modo concomitante e complementar: o aumento da oferta de transporte público, a limitação do uso do automóvel dentro de áreas urbanas e a ampliação e melhoria dos espaços públicos destinados aos pedestres e ciclistas. Afirma ainda o autor que onde essas três ações foram implementadas, a população respondeu positivamente, andando mais a pé e de bicicleta e domando a velocidade e o jeito espaçoso de ser do carro particular. Um alento com pitadas de esperança para o ir e vir das pessoas nas cidades.
A observação aguçada do Manuel Herse nos leva às seguintes perguntas: se é tão óbvio e de fácil compreensão que uma política de mobilidade urbana sustentável e inclusiva deva estar calcada nas três estratégias destacadas por ele, quais motivos levam as cidades brasileiras a serem tão resilientes na promoção de tais medidas? Por que cargas d’água se valoriza tanto as ações de cunho rodoviarista, como construção de viadutos e mergulhões, a duplicação de vias existentes e implantação de novos corredores viários ou, simplesmente, a realização de gastos elevados com manutenção da pavimentação de ruas e avenidas sempre muito superiores aos verificadas na regularização e nivelamento das calçadas ou extensão das ciclovias?
Fica claro que para as autoridades dos municípios brasileiros cuidar bem dos caminhos dos carros tem sido muito mais importante do que daqueles destinados aos pedestres e ciclistas, apesar de serem eles veículos dos mais poluentes, os maiores causadores de acidente no trânsito, os mais espaçosos na ocupação das vias públicas e terem, em média, capacidade de transportar inferior à de outros modais, sendo responsáveis pelo deslocamentos diários de, no máximo, um quarto das pessoas circulantes das cidades médias e grandes do país.
Nem a morte anunciada do petróleo e seus derivados, nem o preço cada vez mais elevado do barril e muito menos a poluição causada pelos veículos motorizados, tem sido suficiente para reduzir a dependência do carro particular em nossas áreas urbanas. O autor chega a afirmar que o automóvel no Brasil “tem quase o status de vaca sagrada”, dada às dificuldades políticas de se aplicar medidas concretas relativas a limitação de seu uso tão intenso quanto indiscriminado por aqui.
Sendo sua produção responsável por perto de 15% do PIB nacional, não chega a espantar a taxa de motorização da população cada vez mais elevada e uma frota de veículos com crescimento de aproximadamente 2,5 milhões de unidade/ano, fora as motocicletas.
A geração de tributos e postos de trabalho na produção, comercialização e uso do automóvel por um lado e a imagem de mobilidade irrestrita a ele concedida por outro, transformaram-se em obstáculos importantes a aceleração de uma política de circulação e transporte capaz de incentivar a variedade dos modos utilizados e a intermobilidade entre eles, tornando mais distante o sonho de cidade com transporte de mais qualidade e maior cobertura espacial. Ainda assim, há cidades que estão conseguindo oferecer uma política de circulação e transporte ambiental e financeiramente sustentável, socialmente inclusiva e acessível e capaz de ajudá-las a se desenvolverem com mais equilíbrio e equidade. Deixando de ser uma mobilidade do tipo relógio, aquela que se movimenta, mas não sai do lugar.
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