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Foto do escritorVicente Loureiro

A MUSA DOS DEUSES

Há exatos 10 anos, fui convidado a escrever todas as semanas um artigo para jornal. O tema escolhido: a cidade. Esse Patrimônio da Humanidade responsável por dar abrigo a quase todas as atividades necessárias a realização e desfrute da vida, uma das maiores invenções da história. Inicialmente, por sete anos, foram publicados no Jornal Extra, depois no site Nova Iguassu Online, Correio da Manhã e Correio da Lavoura, entre outros. Tomar a cidade como musa inspiradora não me parece agora ter sido uma boa decisão. Ela é insaciável, impossível cobrir seus encantos e desvendar seus mistérios.


Digo isto depois de publicar mais de 500 artigos ininterruptos. Falar dela não permite a desculpa comum dos cronistas: a recorrente falta de assunto. Além de entidade a reunir tantos predicados, contradições e complexidades, ela também é novidadeira. Vive a experimentar e estimular inovações. Parece adorar tanto um fato novo quanto um ícone expressivo de seu passado. Por vezes, não tem muito pudor ou cuidado consigo mesma, mas nunca dispensa um mimo. Mesmo um balangandã corriqueiro é capaz de lhe encher os olhos. Seu lastro lhe sustenta, mas é o novo que lhe faz viver.


Com esse modo de ser e de fazer a vida, ela impõe, a quem tem a pretensão de descrevê-la, uma espécie de trabalho de Sísifo, tão interminável quanto inútil. E tem razão. Posso assegurar, depois desse tempo todo de epistolar persistência: é musa inalcançável e provo. Desde o seu surgimento, filósofos, poetas, arquitetos e pensadores diversos tentam emprestar-lhe uma definição, todas elas querendo ludibriar a esfinge mitológica que parece guardá-la: decifra-me ou te devoro.


Mesmo quando desviei o olhar do lago onde sua imagem narcisista rouba a cena e tentei tratar da vida da sua gente, com seus comportamentos, relações e aspirações variadas, constatei não ser possível esgotar os assuntos. Há sempre novas formas de viver nela sendo inventadas ou reinventadas. Repletas de atitudes, criando modas ou lugares onde hábitos e costumes são postos em xeque, fazendo surgir outros, a bolir com conceitos, paradigmas e regulamentos vigentes. Chego a ter dúvida se a vida é que reinventa a cidade ou se é ela, com sua magia e magnetismo, que faz a vida mudar.


Metamorfoses constantes com alteração no modo de produção ou reprodução de seus ativos e experimentos urbanísticos produzem avanços, mas podem recalcar desequilíbrios e desigualdades. Do mesmo modo que os investimentos e cuidados a ela dispensados podem promover coesão de seus súditos, também podem apartá-los ainda mais em suas diversidades. Todo cuidado é pouco ao descrever tais mudanças. O tempo pode apagá-las num piscar de olhos. A relação da cidade com o tempo dá impressão de ser a esperança guardada na Caixa de Pandora.


Entre surpresas e inovações, os desafios do futuro também chamam sua atenção. A concretude do presente, marcada por reminiscências visíveis do passado configurando sua paisagem, não lhe basta. Tem fascínio pelo porvir. Joga nele muitas respostas reclamadas no presente. Ajustar a concretização dos sonhos no tempo torna seu desafio permanente. Por conta disso, talvez, quase nunca lhe agrade falar dos adiamentos sucessivos das promessas não cumpridas. Como se pode ver, tudo isso junto e misturado não gera falta de assunto, o cronista é que não consegue dar conta.



Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,

autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade

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