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Foto do escritorrotarynileste

A SAGA DO PROGRESSO

Eram meados dos anos 60. A Rua do Encanamento estava em obras. Uma galeria de concreto, onde cabia um homem em pé, seguia tomando corpo a cada dia e já passava de ano aquela buraqueira de comportamento bipolar: ora lama, ora poeira. Tábuas emendadas viravam pinguelas errantes, marcando o avançar da lida dos operários. Havia transtornos, mas nada turvava o otimismo dos moradores. Diziam: “agora sim, vamos nos livrar das enchentes”. Até os céticos concordavam. Afinal o progresso batia as portas.


Imagem em preto e branco de uma rua de parelelepidedos, datada de 1968. Onde se vê pessoas andando em ambos os lados das calçadas,  sendo que de um lado há dois carros imponentes da época e ao centro, passando na rua, vê-se  a parte traseira de uma carroça que segue plena pela rua. Isso mostra o contraste da Cidade naquela época.
Nova Iguaçu, 1968. - Fonte: FB Madureira Ontem e Hoje

Numa das tardes calorentas e com aquelas obras chegando ao fim, bisbilhotei, na farmácia do Seu Paiva, a conversa de dois homens alinhados. Soube depois que se tratavam de engenheiros da Prefeitura, de uma tal SUPONI (Superintendência de Obras Públicas de Nova Iguaçu). Anunciavam então para o farmacêutico, porta-voz das boas e más notícias daquele pedaço de cidade, que a pavimentação e saneamento das ruas vizinhas começariam na semana seguinte. Voltei para casa esbaforido e sem aviar a receita aos berros dizendo: – Mãe, nossa rua vai ser calçada na segunda-feira.


Claro, minha mãe duvidou. Cobrou explicações. Queria detalhes. Onde eu tinha ouvido tal epifania? Quem falou? Quando de fato começariam as obras? Se a rua da minha tia, a da costureira Mariza e a da comadre Nilza também estavam incluídas? Havia prestado atenção mas confesso: os detalhes foram muito mais frutos de minha imaginação do que da capacidade auditiva. Era o tal do progresso chegando, quanto mais gente atingida me parecia melhor e mais lógico. Nunca uma boa mentira mereceu tantos detalhes. A ocasião impunha.


Confirmei, sem ter certeza, que toda a extensão de nossa rua e das demais que ligavam a Rua do Encanamento à avenida que seguia em direção a Belford Roxo, seriam calçadas. Assim como as travessas e becos perpendiculares. Até a Rua do Pecado estava na lista, falei forçando o espanto. Sabia que esta teria sua desaprovação. Não haveria para ela razão para pavimentar aquele “antro de perdição”. Fingi aquiescer.


As obras de fato começaram e com elas os buchichos. Até onde vai o calçamento? Porque a Rua da Igrejinha não entrou na lista? E nem o beco do Semidão, nome dado em homenagem ao morador conhecido por só fumar cigarros dessa marca? E cresciam, a medida que as obras avançavam. O andamento e qualidade delas, desvio de materiais, rua incluída na licitação, mas sem obra de fato, orçamento superfaturado, etc. Não faltavam dúvidas e nem maledicências. E olha que não haviam fake news naquela época. Fofoca costumava ter autor, com nome e sobrenome. Me lembro bem que o Alfredinho Lambreta, filho bastardo do bicheiro, era fonte inesgotável daquele disse me disse sem fim.


Finalmente chegou o dia da inauguração. Foi numa manhã de domingo, com direito à comitiva do Interventor Municipal, a cidade era considerada Área de Segurança Nacional, falavam existir muitos comunistas por aqui. Ela, a comitiva, desceu a Rua do Encanamento acompanhada da banda de música “A Furiosa de Nilópolis”, a melhor da região. Ao som de dobrados famosos o alcaide nomeado cumprimentava os moradores de porta em porta. Até um culto da Igreja Batista e um jogo do infantil do Apolo FC contra o 11 Unidos foram interrompidos para ver o progresso chegar. O engraçado é que, no dia seguinte, tudo aquilo já era passado. A cidade já sonhava com mais.



Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,

autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade

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