Eram meados dos anos 60. A Rua do Encanamento estava em obras. Uma galeria de concreto, onde cabia um homem em pé, seguia tomando corpo a cada dia e já passava de ano aquela buraqueira de comportamento bipolar: ora lama, ora poeira. Tábuas emendadas viravam pinguelas errantes, marcando o avançar da lida dos operários. Havia transtornos, mas nada turvava o otimismo dos moradores. Diziam: “agora sim, vamos nos livrar das enchentes”. Até os céticos concordavam. Afinal o progresso batia as portas.
Numa das tardes calorentas e com aquelas obras chegando ao fim, bisbilhotei, na farmácia do Seu Paiva, a conversa de dois homens alinhados. Soube depois que se tratavam de engenheiros da Prefeitura, de uma tal SUPONI (Superintendência de Obras Públicas de Nova Iguaçu). Anunciavam então para o farmacêutico, porta-voz das boas e más notícias daquele pedaço de cidade, que a pavimentação e saneamento das ruas vizinhas começariam na semana seguinte. Voltei para casa esbaforido e sem aviar a receita aos berros dizendo: – Mãe, nossa rua vai ser calçada na segunda-feira.
Claro, minha mãe duvidou. Cobrou explicações. Queria detalhes. Onde eu tinha ouvido tal epifania? Quem falou? Quando de fato começariam as obras? Se a rua da minha tia, a da costureira Mariza e a da comadre Nilza também estavam incluídas? Havia prestado atenção mas confesso: os detalhes foram muito mais frutos de minha imaginação do que da capacidade auditiva. Era o tal do progresso chegando, quanto mais gente atingida me parecia melhor e mais lógico. Nunca uma boa mentira mereceu tantos detalhes. A ocasião impunha.
Confirmei, sem ter certeza, que toda a extensão de nossa rua e das demais que ligavam a Rua do Encanamento à avenida que seguia em direção a Belford Roxo, seriam calçadas. Assim como as travessas e becos perpendiculares. Até a Rua do Pecado estava na lista, falei forçando o espanto. Sabia que esta teria sua desaprovação. Não haveria para ela razão para pavimentar aquele “antro de perdição”. Fingi aquiescer.
As obras de fato começaram e com elas os buchichos. Até onde vai o calçamento? Porque a Rua da Igrejinha não entrou na lista? E nem o beco do Semidão, nome dado em homenagem ao morador conhecido por só fumar cigarros dessa marca? E cresciam, a medida que as obras avançavam. O andamento e qualidade delas, desvio de materiais, rua incluída na licitação, mas sem obra de fato, orçamento superfaturado, etc. Não faltavam dúvidas e nem maledicências. E olha que não haviam fake news naquela época. Fofoca costumava ter autor, com nome e sobrenome. Me lembro bem que o Alfredinho Lambreta, filho bastardo do bicheiro, era fonte inesgotável daquele disse me disse sem fim.
Finalmente chegou o dia da inauguração. Foi numa manhã de domingo, com direito à comitiva do Interventor Municipal, a cidade era considerada Área de Segurança Nacional, falavam existir muitos comunistas por aqui. Ela, a comitiva, desceu a Rua do Encanamento acompanhada da banda de música “A Furiosa de Nilópolis”, a melhor da região. Ao som de dobrados famosos o alcaide nomeado cumprimentava os moradores de porta em porta. Até um culto da Igreja Batista e um jogo do infantil do Apolo FC contra o 11 Unidos foram interrompidos para ver o progresso chegar. O engraçado é que, no dia seguinte, tudo aquilo já era passado. A cidade já sonhava com mais.
Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,
autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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