Felizmente, as áreas centrais de grandes cidades e metrópoles não chegarão ao limite existencial vivido por Hamlet e sintetizado por Shakespeare na célebre frase: “ser ou não ser, eis a questão”. Diferentemente dos homens, não é dado a elas o direito de existir ou não existir. Podem até, com o passar dos tempos, fenecer, mas nunca conseguem suicidar-se. Lutam pela vida reinventando-se, buscando novos propósitos e missões.
Parecem, em alguns casos, operar milagres. Há exemplos de inacreditáveis fênices soerguendo-se de escombros, ruínas ou fracassos. Existe algo de extraordinário nessa imortalidade concreta delas.
Há circunstâncias especiais, como as atuais, onde as áreas centrais em diversas cidades do mundo enfrentam sinais de decadência evidente, pondo em xeque, por vezes, seus atributos mais atraentes. Algumas delas inclusive espantando negócios, moradores e visitantes e, mais grave, perdendo a capacidade de produzir uma nova realidade, empacadas, quase impotentes, diante dos fatos presentes. Acúmulo de causas ajudam a explicar, mas não necessariamente a responder os problemas apresentados em diversos dimensões e já envoltos em complexidades.
O neoliberalismo prometeu e não entregou vida melhor nas cidades, ao contrário, fez aumentar as desigualdades. A pandemia, por sua vez, cuidou de agravar o que já não vinha bem, solapando sobretudo os pequenos e médios negócios. A revolução tecnológica promoveu a irreversibilidade do trabalho remoto e alavancou o e-commerce a patamares surpreendentes e com inegáveis rebatimentos sobre a vida urbana, principalmente em suas áreas centrais. Uma crise habitacional sem precedentes, produto do descompasso entre renda e emprego das pessoas e o preço elevado dos imóveis, tornou visível e alarmante a incapacidade das cidades em incluir os mais vulneráveis.
Debates e ações concretas têm buscado, aqui e no exterior, saídas e inspiração para contextos de pendências semelhantes. Há exemplos de políticas exitosas e também de varadas n’ água, para questões comuns e desafiadoras como a obsolescência dos edifícios, a baixa habitabilidade nas áreas centrais, a deteriorização dos espaços públicos e a insegurança, entre outras. Em contrapartida, ainda se percebe nelas o fluxo intenso de pessoas em busca de oportunidades oriundas da ampla e sortida oferta do comércio e serviços ainda presentes, das comodidades provenientes da infraestrutura disponível e da conexão única com toda a região do entorno e para além dela muitas vezes.
Já se anunciam alguns consensos sobre o que fazer, como o de estimular moradias nas áreas centrais com dimensões variadas e destinadas a faixas de renda distintas, retrofitando para o uso habitacional o estoque de imóveis comerciais existentes, mas, principalmente, construindo novas moradias por ser mais rápido, barato e com impacto nas transformações desejadas e alcançáveis no curto prazo. Só isso não basta, é preciso que esses centros urbanos reencontrem seu papel no cenário da cidade e da região que lhes fizeram ser o que são, recuperando sua área de influência, para além dos limites regionais.
Há atividades, negócios e serviços que para existirem precisam de um centro robusto, acessível a curta, média e longa distância. Seja a pé, de bicicleta, de transporte público e, até mesmo, de avião. Essa atratividade renovável deve ser considerada a chave para fazer as áreas centrais continuarem a cumprir o seu destino: o de suprir a vida dos que as procuram aquilo que um bairro ou uma cidade não consegue lhes oferecer, por melhor que sejam suas comodidades e atrações. Há coisas que só acontecem num grande centro. A mais importante delas talvez seja o senso de lugar de sua gente.
Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,
autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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