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Foto do escritorVicente Loureiro

DESIGUALDADE TRÁGICA


Choveu muito no litoral norte de São Paulo no fim de semana do carnaval. Isso é incontestável. Um recorde histórico no país e no município de São Sebastião, o epicentro da tragédia. Algo como 70 litros de água foram derramados sobre cada metro quadrado em 24 horas. Deu no que deu. Até agora, 69 mortos, 13 desaparecidos e mais de 4 mil desalojados ou desabrigados. Também é irrefutável que, desde 2019, o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) do Governo do Estado chamava atenção, após levantamento realizado, para 52 pontos de alto risco de deslizamento e a necessidade de monitorar de perto, mais de 2 mil moradias assentadas em 21 localidades na cidade. Era iminente a catástrofe.


Houve, felizmente, sincronia entre três níveis de governo na adoção das medidas de socorro imediato à população. Desde o hospital de campanha, a bordo de um navio da Marinha, deslocado para São Sebastião, até o anúncio de compra da capacidade hoteleira da região, para abrigar pessoas alojadas provisoriamente em escolas, igrejas, etc. Passando pela desobstrução e recuperação de estradas e ruas. Todas elas, medidas voltadas à preservação de vidas, evitando novas mortes e promovendo retorno à normalidade das atividades econômicas e sociais. Resta saber se no desenrolar das ações mitigadoras e corretivas futuras, o nível de civilidade política e integração governamental permanecerá presente.


Atitudes de impacto também foram tomadas pelo poder judiciário. O MP estadual, por exemplo, instaurou procedimento para acompanhar as medidas tomadas pelos governos. O Tribunal de Justiça de São Paulo, atendendo a pedidos do governo do Estado de da prefeitura de São Sebastião, autorizou a remoção compulsória de famílias residentes em áreas de risco. Interessante notar que a mesma justiça não foi capaz de ajudar a tirar do papel a construção de 500 casas populares destinadas, prioritariamente, a moradores de áreas risco que dormitam nas gavetas da administração pública faz sete anos. Segundo relatos, por conta da pressão de condomínios de luxo e de proprietários de hotel com receio da proximidade dos mais pobres, provocar desvalorização de seus imóveis.


Há muito o que fazer para mitigar os danos causados e para adaptar a região às emergências das mudanças climáticas: contendo encostas, construindo habitações de interesse social em terrenos seguros, realizando melhorias habitacionais nos assentamentos consolidados, investindo em prevenção e nos mecanismos de defesa civil, isolando áreas de risco e promovendo restauração florestal, entre outras medidas, mas elegendo o ordenamento territorial urbano como instrumento mais adequado para orientar e controlar o uso e ocupação sustentável do solo, visando obter cidades mais inclusivas. Não como aquelas da região e que aparecem nas imagens aéreas, separando ricos e remediados de um lado e pobres e vulneráveis do outro, divididos pela rodovia Rio Santos.


O que se pode extrair do noticiário e da opinião de especialistas é um conjunto de constatações e propostas. Algumas importantes, mas a maioria, infelizmente, buscando culpados ou chovendo no molhado, desculpem o trocadilho. Mas o que mais chama atenção e foi pouco debatido é a razão principal da tragédia: o modelo de desenvolvimento excludente que o país parece consagrar. Visualmente escancarado nas fotos do litoral norte paulista, porém presente na maioria das cidades brasileiras. Recalcando um “apartheid social” onde se tolera a presença dos pobres para a prestação de serviços, incluindo os domésticos, desde que arranjem o seu morar longe e, se possível, fora do alcance dos olhos. Compartilhar o CEP, nem pensar.



Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,

autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade


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