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Foto do escritorVicente Loureiro

PARADOXO URBANO

Era um conjunto de apartamentos assobradados com cara de vila. Bem localizado, a menos de 100 metros da estação ferroviária, cumpriu, ao longo de 7 ou 8 décadas, sua função original: a de abrigar pessoas, com renda suficiente para dar conta do aluguel cobrado. Com o passar do tempo, assistiu à substituição dos inquilinos mais abastados pelos de menor poder aquisitivo, experimentando então ligeira decadência.

Nada de muito grave, até porque a construção era de boa qualidade e esteticamente graciosa. O pátio interno, usado para dar acesso aos apartamentos de fundos, emprestava-lhe um ar de urbanidade e distinção. Aquele grupamento de moradias tinha valor de uso e emprestava ainda certo status a quem nele morava. É bem verdade que os tempos e a cidade eram outros, mas ele sempre foi um bom endereço numa área relativamente segura e bem servida de comodidades urbanas.


Valores esses que parecem já não importar tanto na perenidade e rentabilidade dos imóveis. Há casos, e esse é um deles, em que as leis do mercado não costumam guardar lógica ou fazer sentido. Difícil entender a razão de tais apartamentos desvalorizarem a ponto de serem parcialmente demolidos para dar lugar a um estacionamento. Acreditem: onde morava gente, agora hospedam-se carros dia e noite.

Ou seja, há nesse pedaço da cidade mais gente disposta e com recursos para pagar pela vaga de um carro do que pessoas capazes de alugar um apartamento de sala e dois quartos. Por conta disso, torna compensador ao proprietário por abaixo parte do edifício, pois com estacionamento o retorno financeiro é maior, os aborrecimentos menores e os impostos praticamente inexistem. A cidade, com esse exemplo, entrou na fase do onde desconstruir pode ser melhor do que edificar.


Portanto, trata-se de um paradoxo urbano: onde guardar carros ficou mais rentável do que abrigar gente, a razão de ser principal da existência das cidades. Inaugura-se, com episódios deste tipo, uma nova forma de gentrificação, não expulsando mais moradores originais para dar lugar a outros de maior poder aquisitivo, mas sim para guardar automóveis, cada vez mais ávidos por espaços. Curioso é que a metade do edifício mantida virou uma espécie de atestado de que a tal “lógica” de mercado é capaz de fazer com as cidades.



Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade

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