Nos idos tempos medievais de caça às bruxas, hereges e criminosos diversos, eram as praças e largos das cidades os locais prediletos para execução por queima em fogueiras, enforcamento ou ação de guilhotinas. Nelas mantinham-se os cadafalsos, verdadeiros palcos onde consumava-se a vida dos “errantes”, muitos deles frutos da intolerância religiosa ou política vigentes, quando o estado ainda não era laico e a pena de morte um castigo moral a ser compartilhado diante de um público oprimido sedento por justiça. Espetacularizava-se então, em êxtase coletivo, o castigo capital.
As praças não nasceram com as cidades para essa missão tão macabra, muito pelo contrário. Na antiguidade, chamadas de ágoras ou fóruns, reuniam diversos usos de interesse público. Nelas tomavam-se decisões políticas e jurídicas. Realizavam-se eventos sociais e culturais. Circulavam ideias e muitas vezes mercadorias. Exercia-se nelas a civilidade, expunham e criticavam as ideias. Fazia-se a vida, não a morte.
Dizem alguns autores que se pode medir o grau de civilidade de uma cidade pelo modo como ela trata os espaços públicos, sobretudo as praças. Quanto mais bem planejadas, frequentadas e cuidadas, melhor. Sinal concreto de zelo pelos ambientes de convivência e centralidade para as pessoas. Onde há interação com o meio externo e prevalece o uso do interesse coletivo. Lugar exclusivamente urbano e público por natureza.
Por serem espaços tão relevantes e cultuados, por vezes funcionando como guardiões da memória e da própria “alma” das cidades, as praças ganharam, ao longo dos séculos, nomes simbólicos expressando, em síntese, suas missões funcionais e sociais. Assim, encontram-se mundo afora praças batizadas de Harmonia, Liberdade, Concórdia, Paz Celestial, Aclamação, Conhecimento, Amizade, Namorados e até do Comércio. Nunca Praça da Pena de Morte ou dos Enforcados.
Por conta disso, causa estranheza o fato de uma praça, em pleno século XXI, virar cenário e palco de um enforcamento como o ocorrido em Mashhad, cidade iraniana de 3 milhões de habitantes, considerada a capital espiritual do país e foco de peregrinações religiosas. Reconhecida internacionalmente por seu rico e delicado patrimônio cultural e arquitetônico. Talvez o significado do seu nome, dado ainda no século VIII, Local dos Martírios, ajude a explicar, mas não permite entender.
O que importa é a cena: um homem acusado de esfaquear dois paramilitares durante manifestações contra a morte na prisão de uma jovem curda, detida por se negar a seguir as rígidas normas do modo de vestir das mulheres no Irã, país governado por uma teocracia, é enforcado pendurado por um guindaste na praça central de uma cidade sagrada para o Islã. Ao ver tal imagem concluo: existe a máquina do tempo, pois um fato da Idade das Trevas é transmutado para o aqui e agora e gravado numa câmara 5G. A intolerância é capaz de estrangular não só vidas, mas o próprio modo de viver.
Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa,
autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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