Cerca de 30% da população brasileira vivem hoje abaixo da linha da pobreza. Passam, segundo as estimativas, dos 62 milhões e a imensa maioria estão nas cidades. É possível afirmar: a fome é urbana e, nas médias e grandes cidades, já aparece em ambientes onde dá sinais de ter conquistado uma espécie de endereço certo, pois todos os dias centenas de indigentes lá se encontram pontualmente num ritual a desnudar a desigualdade e a indiferença.
São becos largos ou praças a serem excepcionalmente rebatizados com seu nome, dado a presença de instituições religiosas, do poder público ou da sociedade civil a oferecer um prato de comida a quem tem fome. Sempre existiram esses lugares, aqui e em todo mundo, o que os distingue agora é o seu tamanho e a resiliência do fenômeno. Nos últimos 30 anos, desde o lançamento da campanha da Ação da Cidadania contra Fome, o número de brasileiros abaixo da linha da pobreza praticamente dobrou.
Atingindo hoje quase 1/3 da população brasileira, que, no mesmo período, cresceu perto de 40%, enquanto a urbana aumentava 60%, e a parcela dos mais pobres dobravam de tamanho. Sinal inconteste de que empobrecemos e de que nas áreas urbanas o problema não pode mais ser tratado como invisível e temporário. A presença cotidiana dos socialmente vulneráveis num mesmo lugar à espera de um prato de comida nos prova, ao contrário do que apregoava Betinho: “quem tem fome tem pressa”, que os famintos do Brasil precisam cultuar paciência e resignação, mesmo sendo nosso país um dos maiores produtores de alimentos do mundo.
O Agro parece mesmo ser tudo, inclusive cego e indiferente.
Na minha cidade, há um pedaço de rua que poderia ser chamado de “Beco da Fome” de verdade, não aquela ruela de Copacabana, famosa nos anos 50 por saciar a larica de boêmios, artistas, estudantes, trabalhadores da noite, etc. e onde a Bossa Nova parece ter tomado viço e audiência. Pois num cenário de pouca atratividade urbanística e atravessado por um viaduto, todos os dias centenas dos chamados invisibilizados batem ponto, em busca da manutenção da vida e de alguma dignidade humana.
Há muito se fala da fome, em um dos romances mais importantes da literatura universal: “Fome”, seu autor, o prêmio Nobel Knut Hansun, nos fala do que ela representa na vida de um desesperado e orgulhoso homem a vagar pelas ruas em busca incessante pelo que comer. Para além da ficção, Josué de Castro, nos anos 40 do século passado, com sua Geografia da Fome provava que ela não era um problema natural e sim produto do nosso subdesenvolvimento. Tenho vontade de revisitá-los procurando talvez entender como as cidades brasileiras poderiam vencer a fome, um inimigo tão visível quanto assustador.
Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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