De um modo geral, costuma-se consumir décadas para que um loteamento ou mesmo um bairro planejado consolidem-se e cumpram de fato os compromissos anunciados quando de seus lançamentos. As ilustrações de anúncios de época publicados em jornais confirmam tal tempo de maturação ao apresentarem dois empreendimentos, nascidos no mesmo ano de 1953 na região metropolitana do Rio de Janeiro, cujas trajetórias distintas, em termos de urbanização, demonstram o quanto desigual e demorado tem sido o modelo de desenvolvimento urbano praticado em nossas cidades.
Um deles, localizado no município de São Gonçalo, o Jardim Catarina, considerado o maior loteamento da América Latina com seus 22 mil lotes de 12 por 30m. E, o outro, um bairro totalmente planejado, batizado como Recreio dos Bandeirantes, implantado no Rio de Janeiro quando ainda Distrito Federal, inspirado nos conceitos de Cidade Jardim, segundo o autor do projeto o urbanista José Otacílio Saboya Ribeiro.
Na verdade, o exercício de urbanizar e ou urbanificar um pedaço de cidade qualquer não termina nunca. Há sempre novas demandas a atender ou recuperação de ativos de infraestruturas a realizar por conta de desgastes ou sobrecargas advindas do uso mais intenso e continuado deles. Porém, é possível definir um conjunto de serviços urbanos básicos que quando prestados de modo universalizado e adequados configuram a incorporação de territórios de expansão urbana em partes efetivas e vivas da cidade.
É curioso comparar dois assentamentos humanos nascidos há praticamente 70 anos numa mesma metrópole e equidistantes cerca de 40 km de sua área central. Um deles, motivado por demandas provenientes do crescimento demográfico e do desenvolvimento econômico praticados na região naquele período. E, outro, destinado a atrair moradores para aquele que prometia ser o mais promissor bairro carioca. Ambos garantindo possuir os elementos essenciais ao desenvolvimento e conforto de uma cidade: água, luz, telefonia e farta condução, entre outros.
Apesar de terem hoje população residente estimada em 90 mil habitantes, a ocupação desses dois bairros metropolitanos se deu em velocidades diferentes. Enquanto nas duas primeiras décadas pós lançamento, o Jardim Catarina já somava cerca de 20 mil moradias permanentes, tal número só seria alcançado no Recreio nos primeiros anos deste século. No entanto, há um traço comum a unir os dois empreendimentos: quase toda a infraestrutura urbana implantada se deu por obra e graça dos investimentos do poder público, ainda que com notáveis diferenças de cobertura e qualidade de atendimento entre eles.
Essas e outras razões podem ajudar a explicar a diferença no preço dos imóveis negociados nos dois bairros, chegando o metro quadrado no Recreio dos Bandeirantes a custar, em média, o triplo do praticado no Jardim Catarina. Mais ou menos a diferença proporcional entre o quilo do filé mignon e do acém no açougue. Com uma importante e fundamental diferença: no quilo da carne, o boi foi engordado com o olho e os recursos do dono. Já no caso dos dois bairros em comparação, foi o poder público quem de fato “engordou a terra”. Se criar boi tem sido um bom negócio, imagine o “criar” lote urbano.
Pode demorar mais e ter que lidar com a limitação de existir muito mais mercado para bairros tipo acém do que filé, mas o resultado, pelo visto, é incomparável. A desigualdade socioterritorial nas cidades vem de certo modo sendo financiada pelos governos. Quem pode viver em bairros do “tipo filé” deveria dispensar os subsídios e investimentos dados aqueles que só podem morar nos de “padrão acém”. Parece simples e justo, mas não é. A urbanização do Recreio fez dele um dos melhores bairros para se viver, enquanto a do Jardim Catarina não o transformou em um bom lugar de morar.
Por | Vicente Loureiro
Arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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