Inovações a reboque da internet das coisas, da robótica, da automação, dos sensores e da conectividade estão cada vez mais acessíveis, mudando a forma de viver, trabalhar, circular e consumir das pessoas. Segundo a ONU, mais da metade já vive em cidades em todo o mundo. Inegável a urgência dos governos locais começarem a tratar disso. No caso brasileiro inclusive, independentemente da maioria não ter ainda conseguido livrar-se do esgoto sem tratamento, correndo a céu aberto ou escondido em manilhas. Parece um paradoxo, e é. A cabeça plugada nas inovações do Século XXI, mas os pés ainda chafurdando na lama do século XIX.
A geração “millennials” talvez consiga reduzir essa distância quase escatológica, na medida em que, majoritariamente, já não querem mais usar o carro como conhecemos e de modo bastante distinto dos jovens de alguns anos atrás. Essa atitude tem feito reduzir de forma permanente e crescente as carteiras de habilitação concedidas, conforme dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito). Parte deles inclusive pratica com entusiasmo os postulados da chamada economia circular. Conjugando o verbo compartilhar nos principais atos de viver em cidades, desde o morar até o trabalhar, passando pelo circular, incluindo também os hábitos de consumo. É um tal de “coworking” para lá, “coliving” para cá e com a “bike share” no meio. Às vezes, penso que até os estrangeirismos são compartilháveis. Será?
As mudanças comportamentais, além de percebidas, passaram a ser também mensuradas. Pesquisas do IPEA apontam que 11% dos trabalhadores durante a pandemia migraram para o trabalho remoto. E mais, 25% de todos eles poderiam fazê-lo hoje, sem comprometer os resultados e nem a produtividade. Da mesma forma, o “e-commerce” bombou no mesmo período e segue em franco desenvolvimento e, a vista dos olhos, entulhando as portarias dos edifícios de pacotes cada vez maiores e catapultando o número de trabalhadores de aplicativos, incluindo, é claro, os de entrega, fazendo-os aumentar em 1000% nos últimos cinco anos. Estima-se que um milhão e meio de pessoas estejam vivendo disso no Brasil, a grande maioria em absoluta informalidade.
Estamos falando da transferência de pessoas e de mercadorias principalmente nas cidades, com impactos diretos no território e nos hábitos de vida urbana. Um deles preocupa mais, o também vertiginoso incremento na utilização das motocicletas como opção de mobilidade, de um modo geral, e nos serviços de “delivery” em particular. A frota de motos emplacadas em março desse ano foi maior do que a de automóveis. É a primeira vez em toda a história que tal fato acontece. Até que as soluções mais sustentáveis e seguras de mobilidade das pessoas e das cargas chegarem de fato entre nós, teremos um aumento exponencial de acidentes de trânsito. As emergências dos prontos-socorros sentirão, na ocupação dos poucos leitos disponíveis, os efeitos desse avanço. Ou será retrocesso?
Mas há o que nos animar. Já há táxis voadores sem condutor, com capacidade para dois passageiros, em fase de teste em Dubai. O Amazon recebeu recentemente autorização do governo dos Estados Unidos para fazer entregas através de drones. Uma subsidiária da Embraer já atende encomendas de carros voadores. Robôs para serviços de ‘delivery’ também já começam a ser utilizados. Fala-se até que as cidades precisam começar a projetar e regulamentar o uso de “ruas e estradas” aéreas. Isso sem falar na animação, confirmada por atitudes concretas, das montadoras com os automóveis elétricos e, principalmente, com o carro compartilhado. Mudanças virão mesmo antes de tirarmos os pés da lama.
De minha parte, continuo seguindo o conselho do poeta: “…o de andar na retaguarda da vanguarda.”. É melhor me precaver, pois até então eu acreditava que o título do filme “Aperte os Cintos…O Piloto Sumiu” era só uma versão bem-humorada de uma obra de ficção. Pelo andar da carruagem, perdoem-me o anacronismo, motoristas e pilotos em breve engordarão as estatísticas dos motoqueiros dos “iFood” da vida. Sem trocadilhos, por favor.
*Vicente Loureiro, arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa, autor dos livros Prosa Urbana e Tempo de Cidade
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